segunda-feira, julho 13, 2009

O circo: metalingüistica

Minha metade branca foi ao circo e eu fui nas retinas dela. Foi um espetáculo de metalinguagem. Era a linguagem falando de si mesma, sem palavras, com som e luz, muita cor.

É uma linguagem sensorial. Era o circo do sol, com toda a hegemonia do astro rei, que diariamente, com sua luz e calor, invade, inclusive e principalmente, a alma.
Acho que é esta a intenção da linguagem circense: invadir a alma.

Começa o espetáculo. A luz, o som, as cores, a construção de uma imagem que divagava entre o real, o etéreo e o sideral (eu juro...). Como diria a crítica de arte, uma beleza plástica.

A princípio, o que mais me surpreende é o equilíbrio. Este equilíbrio é construído de coisas indispensáveis, como força e resistência, às custas de disciplina e determinação.

A pessoa tem que ter foco na vida, então é necessário abstrair outro tanto de mundo para conseguir o alvo, o equilíbrio, o ato motor preciso. É a repetição que torna o ato motor perfeito.

Fisiatricamente, o ato motor é o planejamento, em sua maior parte inconsciente, de um movimento. A maior parte é inconsciente mesmo, porque se a gente pensasse na quantidade de músculo que precisa recrutar para levar um copo à boca, ia ter gente morrendo de sede depois do almoço...

Agora imagine você o recrutamento para pessoa ficar se equilibrando em cima do braço próprio, já equilibrado em cima do braço do outro, com o tronco praticamente dobrado sobre si mesmo e as pernas abertas, girando no espaço.

Aí é preciso acreditar no invisível.

E neste invisível inclui o que a ciência explica, como os senos, cossenos e hipotenusas, que a gente estuda no colégio e acha que não serve para nada. Mas eles servem para dar o ângulo exato para sustentar as coisas em cima do pouco oferecido.

E também é preciso acreditar no invisível que a ciência não corrobora, como a confiança. É obvio que a determinação exige auto-confiança. Mas além de confiar e contar consigo mesmo, a pessoa ainda tem que confiar no outro – duas coisas absolutamente fora de moda.

Mas não é simplesmente confiar no outro: é confiar a própria segurança, a própria cabeça, o próprio pescoço, o próprio momento de desequilíbrio, a própria instabilidade, o vôo e o possível erro. É confiar a vida, o real e o imaginário.

E além de confiar tudo ao outro, ainda torcer, acreditar e contribuir para que o ato dele seja tão preciso, tão belo, tão seguro e tão indispensável quanto o nosso. Ou seja, uma versão da frase mais famosa de Jesus cristo, torcer visceralmente pelo outro, como por si próprio.

Depois da confiança, me veio o sonho. Acreditar na beleza do sonho neste mundo tão feio, tão sujo, tão bruto, tão mal freqüentado... lá vem aquele homem caminhando pelo ar, alheio a tudo, com o jornal na cabeça – praticamente um Arnaldo Antunes.

E ao fim da caminhada, ainda suspenso no ar, ele rasga o jornal em mil pedaços, desfazendo o anteparo que o atrapalha de ver o mundo, e desce para compartilhar a magia de todos. É preciso insistir na beleza, porque ela existe.

Apesar de todos os ensaios, a improvisação foi imprescindível. O erro existe, e não se pode deixar que ele acabe com o espetáculo. E para bancar o erro, a ousadia. Retirar pessoas da platéia para improvisar um teatro mudo foi surpreendente. O mais incrível é que todos, sem exceção, aos poucos, foram incorporando a cena, sem técnica, sem roteiro, contaminados pela magia invisível e incentivados pelo olhar solidário e receptivo da platéia, toda desconhecida.

A magia do circo é a fantasia do olhar. E a magia da vida é a arte de manter a fantasia sem ferir-se da realidade. Viver o sonho sem que ele se desencante com possível.

Mas eu, Hermengarda Cavalcanti, plenamente lilás, indo ao circo de carona, sentada aqui nessa retina desta metade branca, fico aqui escutando estes pensamentos. Sinceramente, eu acho que a pessoa que vai pro circo e fica pensando estas coisas, só pode ser louca. E depois, quem não existe sou eu!

Diário de Pacífico

Eu sou uma pessoa pacífica, mas o trânsito me irrita. Eu e meu carro: só solução! O problema são os outros!

Porque a palavra trânsito vem de transitar, de transição, ou seja, ir de um lugar para outro. Isso, na minha concepção, é completamente diferente do que se chama trânsito. Deveria se chamar “fila”, aglomeração, marcha lenta. Acho que engarrafamento é um bom nome.

Dizem que eu sou transgressora. Mas é uma questão ideológica: eu discordo da legislação de trânsito. Não consigo entender porque as pessoas acham de ler as placas em determinadas horas, como por exemplo, quando estamos numa via de mão única, uma ponte, ou um túnel, e tem uma placa escrito: 60km/h.

Alguém acha de obedecer, sem se importar com a fila de pessoas que estão atrás, que talvez discordem e não podem sair. Mas tem horas que a placa diz 90km/h e todo mundo está a 40km/h. Nestas horas parece que ninguém ler as placas...

Isso me irrita.

Você olha para o lado, a fila do lado anda, a sua não. É evidente que você tem o direito de trocar de fila! Quantas vezes quiser. Afinal, não tem “lugar marcado” feito escola primária do começo do século passado! Mas aí vêm dizer que você está costurando...

Isso também me irrita.

O pior é quando acontece de você resolver trocar de fila, você sabe que dá tempo. Mas o cara que está atrás não concorda com a sua opinião. Dá aquela freada brusca! Mas dava tempo: tanto é que não bateu! Este povo vive estressado! Ninguém respeita minha opinião e depois ainda vem dizer que eu sou irritada!

Dizem: você quase bateu! Mas não bati! Tudo bem. É que meu meu carro tem mesmo uns pontos cegos, na realidade, ele tem muitos mesmo! Afinal ele é branco! Quando Saramago disse que a cegueira é branca, é arte. Quando eu falo, é “barbeiragem”…

Ainda acham ruim quando fico irritada!

Outra coisa é o sinal amarelo: a pessoa pára no sinal amarelo sem se perguntar o que acham os que estão atrás... Na verdade, estes semáforos atrapalham mais que ajudam: sempre ficam vermelhos em série. Você parou em um, não tem jeito: vai parar em todos e ainda assistir os seguintes abertos enquanto você está parada! É por isso que eu também não concordo com semáforo. Eles me irritam.

Este trânsito enlouquece qualquer um! Já ouvi cada coisa: gente querendo um rolo compressor, uma catrepilha.... Estas coisas loucas não passam na minha cabeça não! Antes eu pensava num carro voador, tipo “de volta para o futuro”, ou o tapete mágico. Mudei. Hoje em dia, fico imaginando algo mais simples: uma ambulância, ou uma kombi com a placa fria…

Depois você chega! Hora de estacionar! Você demora horas para chegar num lugar, e quando chega: proibido estacionar! Proibido por quê? Algumas proibições são verdadeiramente surreais: um lugar amplo, perto de onde você vai, na sombra! Isto é provocação!

Então eu me pergunto: se Deus nos deu livre arbítrio, por que justamente o DETRAN quer me tolher disso?

100 anos de amor em tempos de cólera

Eu já viajei de férias para Macondo várias vezes. E às vezes, mesmo sem o passaporte do livro, eu visito meus amigos na cidade “fantástica”, me sento na beira do rio de pedras brancas como ovos pré-históricos, lamento as begônias murchas do jardim dos Buendías, e nos meus desconsolo, eu já senti o cheio das amêndoas amargas...

“Do amor nos tempos do cólera” é um livro muito mais fácil, mais próximo da realidade dos desencontros da vida. Florentino Ariza é o pivô de várias histórias de amor e sexo, enquanto alimenta um amor platônico, que mesmo senil, não perde o encantamento. E mesmo platônico, sobrevive à realidade.

É um livro que fala das muitas formas de amar e da ânsia de ser amado, da vivência do amor e, fundamentalmente, da dificuldade cotidiana de se deixar ser amado. Foi onde eu entendi a diferença entre solidário e cúmplice.

Eu reli “100 anos de solidão” após 10 anos. Continuou sendo o livro mais essencial pra mim. Talvez por ter sido escrito muito depois da “fundação”de Macondo, o realismo fantástico está mais cristalizado.

Para mim, o realismo fantástico é como uma linguagem mitológica. São histórias fantasiosas, cheias de simbolismos, de exageros e coisas surreais. Desse jeito, vai abordando os conflitos humanos, dos mais primitivos aos mais rebuscados, as relações humanas, sobretudo familiares. Tudo como se fossem parábolas, coisas externas a nós, distantes, inatingíveis. Só que ao invés de deuses e heróis, ele fala de loucos, infelizes, anti-heróis, fracassados, ilusionários – ou seja, a imensa maioria dos habitantes da crosta terrestre.

Gente que sub-viveu, gente que sobreviveu, gente que se superou, gente que sucumbiu ao próprio orgulho, gente que se amargurou, gente que tentou mudar de sina, gente que amou, gente que apenas sobrevoou os sentimentos que transformam um ser respirante num ser vivo.

E você vai lendo aquilo ali, caricaturado, tão distante de si, que nem se defende de ler aquilo que também somos nós. E num dado momento, eis-me exposta, até as vísceras espalhadas na calçada de Macondo.

O mais impressionante é que o grande cenário são as mentes das personagens.
São mais de 100 anos de história de uma família, onde todo mundo convive sem interagir – cada um circunscrito em sua própria solidão. Cada um com seus temores, às vezes tão sólidos que formam muralhas de sentimentos, cujos muitos tijolos são desconhecidos até deles mesmos.

Curiosamente, são perfeitamente capazes de predizer as ações e reações do outro, mas incapazes de atravessar o muro imaginário e dividir sua dor, alegria, ou solidão, que quer que seja. São solidamente sós.

É interessante também que as crianças são quase invisíveis, pano de fundo. Só passam a ter visibilidade quando causam transtornos, como a insônia de Rebeca.

Todo mundo reclama da repetição de nomes. Eu já li com e sem a árvore genealógica. Realmente ela ajuda a se situar melhor. Mas a repetição dos nomes é um recurso brilhante para abordar o que os chineses chamam de “taras familiares”. Essa repetição de histórias e herança de papéis.

Uns sucumbem, outros abarcam com orgulho, uns aceitam como maldição, uns se resignam, outros fogem, indo embora. Mas mesmo estes, voltaram à cidade em ruínas da família desfeita. É como se a herança fosse tão implacável como o nome próprio.

E todo mundo gira em torno dos fantasmas e maldições. O patriarca, José Arcádio Buendía, é a personificação disso. É a referência do que não ser: o lunático, literalmente amarrado, um fantasma vivo , solidificado e solitário.

E assim, todo mundo vive mecanicamente, entre os fantasmas próprios e alheios.
Tem algumas personagens brilhantes. Amaranta e seus incestos, abdicando da vida pelo orgulho. Remédios, a bela, era tão alheia ao destino da família que foi abduzida. Rebeca, ao ser adotada, adotou também a sina da família, de morrer de amor e viver de solidão – entre fantasmas. Melquiades é o guardião da essência, dos mistérios, tão imortal quanto a própria vida. Os gêmeos: um goza a vida e sofre a morte e outro sofre a vida e goza a morte.

E Úrsula, a matriarca. Um dos melhores capítulos é o que ela disseca com lucidez implacável cada pessoa de sua família, versa sobre os valores, sobre o tempo, como as pessoas apuram os defeitos e diluem as virtudes. Uns perseguem a verdade se infiltrando em ilusões (José Arcádio), muitos se acomodam apenas com a ilusão do amor, e outros, com a ilusão de tudo, como era claramente a opção de vida de Fernanda.

Os que conseguem amar, não se libertam. Seja lá como for o amor, mesmo que seja mais sexo que qualquer outra coisa, como José Arcadio e Rebeca, também são condenados aos tabus, aos fantasmas, ao extermínio e a solidão que rodeia o risco de amar.

E assim, transcorre a vida: fracassados pelo êxito, falidos pelo sucesso e punidos pelo amor. Será que sobreviveremos às formigas ruivas sem rabos de porcos?