sexta-feira, julho 02, 2010

Para um Quilo de Pobre

Por: hermengarda mais Rodrigues que Cavalcanti

Na semana passada, abriram 470 vagas para contrato temporário de um ano, para terapeutas e enfermeiros no Hospital da Restauração. Este tipo de vínculo não dá garantias formais, nem direito a férias ou “décimo terceiro”. É feito através da famosa “seleção simplificada”, ou seja, avaliação de currículos.

Apesar da falta de direitos, os candidatos tinham o dever de ter especializações, pós-graduações, cursos de capacitações, mestrado e, se possível, doutorado.

Houve um amontoado de seres vivos em busca do tal emprego na quinta e na sexta feira. Relataram sobreviventes que permaneceram até às 20 horas no afã da entrega. A confusão foi tamanha que foi acionado o batalhão de choque para conter a multidão que se digladiava.

Na semana seguinte, estavam todos com a consciência intranqüila, especulando quais os critérios destas “seleções simplificadas” do Estado, cada dia mais usadas.

Este expediente de contratar temporariamente, sem direitos e com deveres, por seleção simplificada é muito prático, sobretudo para momentos “emergenciais”. Acontece que o Estado tem considerado nosso estado de guerra civil perpétua como uma emergência perene.

E haja contratos temporários.

Então, não tendo quadro fixo de funcionários, não há organização para recebê-los. E na hora de ser admitido, só se olham os salários. Ninguém se questiona como vai trabalhar nas enfermarias, contando apenas com as próprias mãos e a boa vontade. Isso para quem dispuser de ambos, obviamente.

No Hospital Otavio de Freitas, por exemplo, as fisioterapeutas não têm cadeiras para sentarem-se enquanto escrevem os procedimentos realizados nos pacientes.

Se considerarmos o detalhe do Hospital da Restauração ser o mais lotado de todos, já que é a principal referência de trauma do Estado, tememos que falte oxigênio para os terapeutas em serviço e para os pacientes em atendimento.

A remuneração seria R$1.770,00 para trabalhar em regime de plantão, o famoso “12/36”. Em outras palavras: segunda, quarta, sexta e domingo, terça, quinta e sábado, e assim indefinidamente até terminar o contrato. Dessa maneira, percebemos facilmente que todo final de semana, tem-se um plantão no sábado ou no domingo.

Salienta-se que, além do dia de plantão mudar toda semana, estes plantões são diurnos. Em outras palavras, a seleção é suspeita, as condições de trabalho são insalubres e a carga horária prejudica a rotina social, familiar e outros vínculos de trabalho.

Mas ainda tem mais um detalhe: no salário de R$1.770, 00, tem o “desconto” de 27,5% de imposto, retido, literalmente, na fonte pagadora. Então, os terapeutas especializados e pós-graduados receberão R$1.283,25, que os confere o salário de R$31,67 por hora.

Saímos da fila de seleção de currículo no sol quente do Hospital da Restauração e vamos fazer as unhas. Você entra num “salão de beleza”, é recepcionado por uma pessoa asseada, bem humorada e sorridente, que lhe convida a sentar-se em uma poltrona, geralmente branca, muito limpa.

Neste ambiente perfumado, escuta-se apenas temáticas efêmeras e amenidades. Caso não queira se pronunciar, você pode se resguardar e a ler, geralmente, assuntos sobre a ilha de caras, romances de estrelas e corpos deslumbrantes e bem fotografados de ambos os sexos.

Nos salões de referência do Estado, facilmente você paga 30 reais para fazer as unhas das mãos e dos pés. Se quiser cortar cabelo, fazer escova, hidratação, escova progressiva, tingir, dar luzes e coisas afins, você gasta, numa tarde, o equivalente ao pagamento de um dia de plantão do referido terapeuta, acima citado.

Tudo isso, sem insalubridade, sem mau cheiro, sem se confrontar, auditiva e visualmente, com toda sorte de tragédias humanas, sem se expor a marginais, sem riscos e sem a responsabilidade. E sem os gastos com formação, educação e atualização.

E como ninguém pede nota fiscal ou qualquer recibo, e se pedir, a dona, ainda muito sorridente, vai lhe dar uma desculpa qualquer para demovê-lo. Claro, se a dona estiver. Porque recibo, em salão, é uma coisa que só a dona ou o dono pode emitir. Mesmo que tenha maquininha de cartão de crédito. Eu já fiz o teste.

Conclui-se que, enquanto o plantão do terapeuta é descontado “na fonte”, o lucro do salão, além de líquido, é facilmente sonegável.

Mas os “clientes” do hospital são pobres, às vezes, miseráveis. Mesmo quando sabem ler, desconhecem os próprios direitos. Estão acostumados a toda sorte (ou todo azar) de maus tratos da vida. Muitos já chegam sequelados. A imensa maioria nunca se cuidou – por qualquer que sejam as razões. E ainda têm os bandidos....

O lema então passa a ser “o Estado finge que paga, e a gente finge que trabalha”. E neste discurso, nos despedimos da civilidade, da condição de humanos. Dentro em breve, serão rebanhos de pacientes. E os terapeutas serão substituídos por alguma máquina que faça “algo parecido”, tipo “ordenhadeiras”.

A prescrição será quantificada: “um quilo de fisioterapia para cada quilo de pobre”, até que a morte os separe. Já que a distância, em vida, nem Deus sabe qual é.

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