sábado, janeiro 30, 2010

Música é coisa muito séria

Eu nasci numa casa que todo mundo gostava de música, e cantava, desafinado ou não. A música faz parte de mim, e com a intimidade de quem sente música de dentro pra fora, dentro dos meus conceitos, nem todo barulho eu classifico como música.

Ultimamente, tem sido muito difícil achar música boa. Mas elas existem. E o melhor é que, as que já existem, não morrem. Assim, elas têm um papel marcante na história dos países, das revoluções, dos carnavais, enfim, das pessoas.

É um passaporte capaz de levar a outros mundos, imaginar outras realidades, trazer sensações, emoções, pessoas. A música tem uma magia, que muitas vezes, dispensa as palavras. As músicas clássicas, por exemplo, concebidas em outras realidades, outros contextos, outros tempos, com outros valores sociais, e você escuta e ela se decodifica em sentimentos.

Fica quase palpável o deslumbramento de “clair de lune”, a magia da primavera de Vivaldi, o desconsolo de Beethoven. E como eu pertenço a Pernambuco, diria que fica-me sólido o carnaval varrendo das ruas de vassourinhas.

A letra nem sempre diz tudo. Às vezes não diz nada. Às vezes, são frases inteiras, e às vezes, meias palavras. Arnaldo Antunes diz tudo desconstruindo as palavras.

A incoerência é emblemática em algumas músicas, como a agricultura celeste(1) de Jorge Benjor e a gravidez de um avião de Marina Lima(2). É bem verdade que a incoerência não é novidade.

Lembro muito do meu avô cantando uma valsa onde o compositor era apaixonado por uma boneca de louça(3) e uma varanda bem conhecida, chamada “sertaneja”, onde o cidadão pedia asas a Deus.

Há também a coerência contextualizada, como o plâncton(5) ou o sindico Tim Maia(6). E a coerência decodificada, com os temas bíblicos de Zé Ramalho(4), e “flores” do Titãs. Vai num show e olha a empolgação da galera cantando as flores no travesseiro, no telhado, no corpo inteiro, totalmente alheias à descrição do velório!

Muito além, tem a arte de dizer sem falar nada, como as músicas da época da censura. Dedico minhas especiais reverências à imensa obra de Chico e ao Pavão Misterioso de Ednardo.

Ainda no quesito letras, não podemos esquecer o romantismo devotado ao destempero de Pixinguinha, como em “Rosa”, “carinhoso” e o “sensorialismo” de Cartola(7), percebendo a presença da amada na lembrança roubada do perfume silencioso das rosas e na aurora do sol.

Seria impossível falar de letras sem citar a lucidez do “maluco beleza”. Cantando, denunciou a vida, mecânica e conformada, alheia aos sentimentos e aos desejos inerentes da condição humana.

Na sua irreverência, Raul vai de Deus ao diabo, passando por Freud e Judas(8). Através da “alforria química”, tentou fugia, ainda que momentaneamente, da realidade torpe, que enxergava com uma lucidez incompatível com a vida.

Era a definição de vanguarda.

Vamos ao quesito voz, agora. Na música, uma boa voz não é tudo, mas faz diferença. Tem algumas vozes que são verdadeiramente fantásticas, e ficaram tatuadas na minha mente.

Eu sempre soube que a voz de Milton e Mercedes Sosa são a voz da liberdade. A voz de Elis era a voz do sentimento. A voz de Nana (Caymmi) é a saudade, assim como a de Dorival era a voz da preguiça.

Arnaldo Antunes é a voz do inconsciente e Chico Science tinha a voz do estilo, da inovação, da identidade. De qualquer forma, inquestionavelmente, a voz de Zé Ramalho vai narrar o apocalipse.

Mas independente dos recursos vocais, a melhor interpretação é quando quem canta é a alma. Mas às vezes, a alma se transforma em voz, como é o caso de Lirinha(9), assim, o corpo todo canta. E a gente chega a ver a realidade da música se construindo no palco.

E a capacidade da música de trazer em si uma realidade é tão forte que tem música ruim que, depois de muito tempo, a gente gosta de escutar por causa das lembranças.
A gente pode querer e gostar, mas nem todo mundo consegue construir a essência de uma música.

Música, de verdade mesmo, é coisa muito séria. É um mistério fazer a melodia, encaixar uma letra na harmonia, ter ritmo, imprimir uma mensagem, construir uma letra, e depois, incorporar nela uma alma.

Pena que hoje em dia, o que mais tem é música desalmada...

1 eu vou torcer – Jorge Benjor
2 grávida – Marina Lima e Arnaldo Antunes
3 – “enfim eu vi nesta boneca uma perfeita Venus” – versos de José de Alencar, musicados
4 – eternas ondas, a terceira lâmina, canção agalopada
5 – spirogyra story
6 W/Brasil (chama o síndico)
7 – alvorada, as rosas não falam
8 – carimbador maluco, dia da saudade, ilha da fantasia, alcapone, aluga-se, canceriano sem lar, canto para minha morte, meu amigo Pedro, quando você crescer, coisas do coração, como vovó já me dizia, DDI,, cowboy fora da lei, é fim de mês, Judas, você, sim, tente outra vez, o homem, por quem os sinos dobram, movido a álcool, S.O.S., paranóia I e II, rock do diabo – é difícil escolher pouco dele...
9 –vocalista de cordel do fogo encantado

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