quarta-feira, outubro 29, 2008

Voto Facultativo

Ontem, cumprimos com nossa obrigação cívica de votar. Teoricamente é um direito nosso, mas na realidade, é um dever, um compromisso que o eleitor tem com o Estado, que não cumpre a imensa maioria das suas obrigações com os eleitores. E caso o eleitor não cumpra este direito, paga multa, e perde alguns de seus outros direitos.

Assistindo as propagandas políticas, vemos que realmente, o limite da cara de pau é o céu. Em todo Brasil, assistimos o limite do absurdo. Em São Paulo, "corinthiano vota em corinthiano", eram dois, a proposta de um deles prometia retornar o Corinthians para a primeira divisão. No Rio, tinha a mãe loura do funk e "fala bicho" (e o gato mia).

Aqui em Recife, temos a ex-BBB, Pink, com um laço cor de rosa no pescoço. E outro, que muito me chamou atenção, foi Mauro Shampoo, com o que se pode chamar de "cabeleira" armada. Ao lado deste, Mendocinha - candidato a governador.

Eu nunca ia poder me candidatar... nunca ia me passar para tirar uma foto que fosse com uma criatura perobal destas.

A TVE fez uma pesquisa nas ruas para saber quem sabe qual é a função do vereador, do prefeito, dos deputados... ninguém sabia. Apenas vota, porque é obrigação. O povo tem que cumprir sua obrigação. Os governantes não.

O Estado...

Fico imaginando se o voto não fosse obrigatório: quem ia votar? Sai perguntando: só a minha mãe, que ainda se emociona por ter o direito de votar. Eu sinceramente acho que teria orgulho de exercer meu direito de votar em alguém que eu admirasse, acreditasse, que eu elegeria para me representar.

Se o voto fosse facultativo, eles iam prometer favores, dar cestas básicas, e o pobre descrente, na hora de sair de casa, do seu dia de descanso e lazer de domingo, ia simplesmente lembrar das eleições anteriores e das promessas não cumpridas. Ia sair de sua casa sem saneamento básico, para pegar o transporte publico ineficaz, chacoalhando pelas ruas esburacadas, na cidade insegura, com sua pouca escolaridade?

E passar pelos hospitais sucateados, pensando nos dias, nas promessas de campanha, na realidade, na segunda feira que se seguiria a festa de comemoração. Na primeira eleição de voto facultativo, a abstinência ia ser tão grande que não ia dar pra eleger ninguém. Ninguém ia votar. Não ia dar para eleger ninguém.

E ai, talvez, eles fizessem outras propagandas políticas, outras propostas. E pelo menos a campanha ia ser menos ridícula.

Ai acordo de manha e vejo a proposta de um tal candidato que, em 10 anos, as urnas eletrônicas sejam substituídas por uma urna que reconhece a digital do eleitor para evitar a fraude. Mas o eleitor é o fraudado... a fraude está do lado de lá da tela...

sábado, outubro 04, 2008

"manda uma real"

Conheci Ana Cristina na residência de fisiatria. Ela chegava chiquérrima, em cima do salto, para o ambulatório da segunda à tarde, enquanto eu ficava de jeans e rasteirinha. E ficamos prontamente amigas. Um belo dia ela me diz que vivia se escalando para sair comigo, ir ao forró na lapa, ir a forró, e eu não levava ela a sério. Enfim: fomos. Estava eu na esquina, de saia jeans e rasteirinha, chega Giovana de vestidinho e saltinho e Aninha chegou de calça social e saltão.

Segundo ela, porque eu realmente não me lembro, eu dancei a noite inteira e ela não dançou nenhuma música. A partir de então, ela comprou uma sandália de couro na feira, uma saia de forró, e monitorava a indumentária de qualquer amida dela que quisesse ir desavisadamente para a lapa.Uns dois anos depois, ainda me lembro, íamos para a casa de Zezé uma terça a noite.

Ela foi me contando de um fisioterapeuta que ligou para discutir o caso, e aproveitou o embalo, declarou-se e chamou-a para sair. Ele foi mais que claro, translúcido, praticamente incolor... E ela, apesar de assustada, aceitou. Até eu, mera ouvinte, me assustei. Marcaram para quinta, dois dias depois. Ele ligou 1 hora antes do combinado e ela já estava convicta que tinha levado um bolo.

Visualizo a cena relatada: ela deitada de pijama, falando que , como ele não confirmou (o combinado dois dias antes), ela foi ver um paciente e ainda estava atendendo. E neste exato instante, ele responde no legítimo e sonoro carioquês: "ah, Ana Cristina... fala sério, ae! Manda uma real!".

Acontece que, não bastasse ser libriana e mineira de nascença, seu espírito conciliador e diplomático foi doutrinado em todos os protocolos da geriatria. No dia seguinte, estava ela indignadíssima: "Manda uma real, Danitche?", que tinha outras maneiras de se falar a mesma coisa... Impávida, eu apenas afirmava que ela estava errada porque estava mentindo e que todo mundo fala gíria.

A dialética perpetuou-se até sábado, com participação especial de Flavinha, até 20 minutos antes do almoço, que ela ainda não sabia se ia. Imagine a cena: as três, em pleno SAARA, no centrão do Rio de Janeiro, discutindo as formalidades da marcação de um encontro, a alegação perobal das desculpas esfarrapadas e as respectivas reações aceitáveis.
- Ah Daninha! Isso não é jeito de se falar! Tenho certeza que a Giovana vai concordar comigo! "dá uma real"!? eu detesto quem fala gíria!
- Conversa, Ana Cristina! Eu falo gíria pa-ra-ca-ra-lho, ainda invento outras e tu me adora!
- mas eu não namoraria com você!
- graças a Deus! Mas você vai!

Ela foi! Silvio chegou no almoço do sábado de calça cargo, tênis e camiseta. E no mais puro carioquês, expôs suas idéias, suas posturas, sua paixão pela profissão e a sensibilizou profundamente. Depois, acompanhou-a até o carro.Na terça seguinte, conheci Silvio. Tinha um show no circo (voador) de uma "galera" de Pernambuco e cada um de nós vinha de um canto.

Chegamos todos simultaneamente atrasados apenas há tempo de escutar as duas últimas músicas: o show, incrivelmente começou na hora! Foi a primeira vez que Sílvio me agradeceu com o mesmo sorriso maior que a boca. E depois, abaixou-se, abrindo as pernas, para abraçá-la melhor: Aninha, toda delicadinha, no meio daquele abraço largamente autêntico e claramente apaixonado.

E ela me chamou num canto, contou, toda emocionada, que tinha ganho flores! Pois é, meu compadre é um homem à moda antiga: leva flores, abre a porta, puxa cadeira, troca pneu e resistência de chuveiro. Vale salientar que inclusive pediu autorização ao pai de Ana para morar com ela! Uma versão moderna do pedido de casamento: autorização paterna para fazer o "test drive", com sérias intenções de casar!

O romance foi se instalando, e no mais claro pernambuquês, cada dia eles estavam mais "engangado" um no outro. Perdi vários capítulos porque mudei da cidade maravilhosa para o centro do universo. Quando voltei em agosto, foram os dois me encontrar. Em março, chegam os dois aqui no centro do universo. Antes que a madrinha os buscasse, chegaram os dois abraçados na rua do futuro. Simbólico! E poético...

Passaram 4 dias. Aninha, elegante, passeava de saltinho sem perder a pose pelas ruas de calçadas, de mãos dadas com Silvio, de havaiana e jeans. Discorremos em várias temáticas, enquanto eu e Silvio trocávamos gírias, sempre referenciando o " dá uma real", Aninha sempre contra-argumentava.Então, agora, se celebra na sociedade terrestre uma união que já aconteceu entre os dois universos. Já foi inscrita em duas vidas e talhada em duas almas. Na delicadeza da realidade, buscamos uma forma autêntica de se falar em diferentes idiomas que o amor mandou uma real ao sonho, e ele se tornou uma realidade possível, que todo mundo pode constatar só de olhar pra eles!

Sou madrinha, com muita honra, por mérito, apenas no momento inicial. Mas eu sei que fui apenas um instrumento: já devia estar escrito no espaço sideral...

29 de setembro de 2008

O correio sideral reverencia o centenário da morte de Machado de Assis. Comemorar o aniversário da morte de alguém é celebrar o dia em que a pessoa virou fumaça. E este é um evento que muito me diz respeito.

Machado é um velho amigo, que há tempos não encontrava. Encontrei em São Paulo, no museu da língua portuguesa: aquele belíssimo espetáculo. É totalmente desnecessário falar da genialidade dele, das superações de tudo e da sua posição entre os melhores escritores. Isso muita gente já sabe, e quem não sabe, vai assistir ou ler nas tantas homenagens.

Eu prefiro falar de outra coisa: tem um filosófo que diz que a palavra escrita e a memória não conseguem apreender o real como ele se apresenta. Mas Machado consegue transcender esta apresentação do real, multiplicando suas possibilidades, quando convida o leitor, a cada chamada (caro leitor) a construir expectativamente uma nova realidade dentro da ficção.

"retórica dos namorados, dá-me uma comparação exata e poética para dizer o que foram aqueles olhos de Capitu. Não me acode imagem capaz de dizer, sem quebra da dignidade de estilo, o que eles foram e me fizeram. Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá a idéia daquela feição nova. Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma forca que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca. Para não ser arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelos ombros, mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me, tragar-me"

(capitulo XXXIII – olhos de ressaca – Dom Casmurro, 1899 – Machado de Assis )