segunda-feira, julho 13, 2009

100 anos de amor em tempos de cólera

Eu já viajei de férias para Macondo várias vezes. E às vezes, mesmo sem o passaporte do livro, eu visito meus amigos na cidade “fantástica”, me sento na beira do rio de pedras brancas como ovos pré-históricos, lamento as begônias murchas do jardim dos Buendías, e nos meus desconsolo, eu já senti o cheio das amêndoas amargas...

“Do amor nos tempos do cólera” é um livro muito mais fácil, mais próximo da realidade dos desencontros da vida. Florentino Ariza é o pivô de várias histórias de amor e sexo, enquanto alimenta um amor platônico, que mesmo senil, não perde o encantamento. E mesmo platônico, sobrevive à realidade.

É um livro que fala das muitas formas de amar e da ânsia de ser amado, da vivência do amor e, fundamentalmente, da dificuldade cotidiana de se deixar ser amado. Foi onde eu entendi a diferença entre solidário e cúmplice.

Eu reli “100 anos de solidão” após 10 anos. Continuou sendo o livro mais essencial pra mim. Talvez por ter sido escrito muito depois da “fundação”de Macondo, o realismo fantástico está mais cristalizado.

Para mim, o realismo fantástico é como uma linguagem mitológica. São histórias fantasiosas, cheias de simbolismos, de exageros e coisas surreais. Desse jeito, vai abordando os conflitos humanos, dos mais primitivos aos mais rebuscados, as relações humanas, sobretudo familiares. Tudo como se fossem parábolas, coisas externas a nós, distantes, inatingíveis. Só que ao invés de deuses e heróis, ele fala de loucos, infelizes, anti-heróis, fracassados, ilusionários – ou seja, a imensa maioria dos habitantes da crosta terrestre.

Gente que sub-viveu, gente que sobreviveu, gente que se superou, gente que sucumbiu ao próprio orgulho, gente que se amargurou, gente que tentou mudar de sina, gente que amou, gente que apenas sobrevoou os sentimentos que transformam um ser respirante num ser vivo.

E você vai lendo aquilo ali, caricaturado, tão distante de si, que nem se defende de ler aquilo que também somos nós. E num dado momento, eis-me exposta, até as vísceras espalhadas na calçada de Macondo.

O mais impressionante é que o grande cenário são as mentes das personagens.
São mais de 100 anos de história de uma família, onde todo mundo convive sem interagir – cada um circunscrito em sua própria solidão. Cada um com seus temores, às vezes tão sólidos que formam muralhas de sentimentos, cujos muitos tijolos são desconhecidos até deles mesmos.

Curiosamente, são perfeitamente capazes de predizer as ações e reações do outro, mas incapazes de atravessar o muro imaginário e dividir sua dor, alegria, ou solidão, que quer que seja. São solidamente sós.

É interessante também que as crianças são quase invisíveis, pano de fundo. Só passam a ter visibilidade quando causam transtornos, como a insônia de Rebeca.

Todo mundo reclama da repetição de nomes. Eu já li com e sem a árvore genealógica. Realmente ela ajuda a se situar melhor. Mas a repetição dos nomes é um recurso brilhante para abordar o que os chineses chamam de “taras familiares”. Essa repetição de histórias e herança de papéis.

Uns sucumbem, outros abarcam com orgulho, uns aceitam como maldição, uns se resignam, outros fogem, indo embora. Mas mesmo estes, voltaram à cidade em ruínas da família desfeita. É como se a herança fosse tão implacável como o nome próprio.

E todo mundo gira em torno dos fantasmas e maldições. O patriarca, José Arcádio Buendía, é a personificação disso. É a referência do que não ser: o lunático, literalmente amarrado, um fantasma vivo , solidificado e solitário.

E assim, todo mundo vive mecanicamente, entre os fantasmas próprios e alheios.
Tem algumas personagens brilhantes. Amaranta e seus incestos, abdicando da vida pelo orgulho. Remédios, a bela, era tão alheia ao destino da família que foi abduzida. Rebeca, ao ser adotada, adotou também a sina da família, de morrer de amor e viver de solidão – entre fantasmas. Melquiades é o guardião da essência, dos mistérios, tão imortal quanto a própria vida. Os gêmeos: um goza a vida e sofre a morte e outro sofre a vida e goza a morte.

E Úrsula, a matriarca. Um dos melhores capítulos é o que ela disseca com lucidez implacável cada pessoa de sua família, versa sobre os valores, sobre o tempo, como as pessoas apuram os defeitos e diluem as virtudes. Uns perseguem a verdade se infiltrando em ilusões (José Arcádio), muitos se acomodam apenas com a ilusão do amor, e outros, com a ilusão de tudo, como era claramente a opção de vida de Fernanda.

Os que conseguem amar, não se libertam. Seja lá como for o amor, mesmo que seja mais sexo que qualquer outra coisa, como José Arcadio e Rebeca, também são condenados aos tabus, aos fantasmas, ao extermínio e a solidão que rodeia o risco de amar.

E assim, transcorre a vida: fracassados pelo êxito, falidos pelo sucesso e punidos pelo amor. Será que sobreviveremos às formigas ruivas sem rabos de porcos?

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