quarta-feira, setembro 27, 2006

Trechos da Paixão de GH segundo Clarice

"Aconteceu-me algma coisa, que eu, pelo fato de não saber como viver, vivi uma outra?
A isso quereria chamar de desorganização, e teria a segurança de me aventurar porque saberia depois para onde voltar: para a organização anterior. (...)

Na confirmação de mim eu perderia o mundo como eu o tinha. Se eu me confirmar e me considerar verdadeira, estarei perdida porque não saberei onde engastar meu novo modo de ser. (...)

Perdi alguma coisa que me era essencial e que já não me é mais. Não me é necessária. Assim como se eu tivesse perdido uma terceira perna que até então me impossibilitava de andar mas que fazia de mim um tripé estável. (...)

Esta terceira perna eu perdi. E voltei a ser uma pessoa que nunca fui. Voltei a ter o que nunca tive: duas pernas. Sei que somente com duas pernas é que eu posso caminhar. Mas a ausência inútil de uma terceira perna me faz falta e me assusta. Era ela que fazia de mim uma coisa encontrável por mim mesma e sem sequer precisar me preocupar. (...)

É difícil perder-se. É tão difícil que provavelmente arrumarei depressa um modo de me achar. Mesmo que achar-me seja de novo a mentira que vivo. (...)

Sei que ainda não estou sentindo livremente, que de novo penso porque tenho por objetivo achar – e que para segurança, chamarei de achar o momento em que encontrar um meio de saída. Por que não tenho coragem de achar apenas um meio de entrada? (...)

Como explicar que o meu medo maior seja o de ir vivendo o que for sendo? Como é que se explica que eu não tolere ver, só porque a vida não é o que eu pensava e sim outra – como se antes eu tivesse sabido o que era. (...)

Por que é que ver é uma tal desorganização? E uma desilusão. Talvez a desilusão seja o medo de não pertencer mais a um sistema. No entanto se deveria dizer assim: ele está muito feliz porque finalmente foi desiludido... (...)

Meu medo agora é que meu novo modo não faça sentido? Mas por que não me deixo guiar pelo que for acontecendo? Terei que correr o risco do acaso.

Perde-se significa ir achando e nem saber o que fazer do que se for achando. As duas pernas que andam sem mais a terceira que prende. É que eu quero ser presa. Não sei o que fazer com a aterradora liberdade que pode me destruir...
Ainda aquela coisa latejando, a que eu estaria tão habituada que pensava que latejar era ser uma pessoa. É? Também. Também. (...)

Terei que ter a coragem de usar um coração desprotegido e de ir falando para o nada e para ninguem? Assim como uma crianca pensa para o nada. É correr o risco de ser esmagado por acaso. (...)

Toda compreensão súbita é finalmente a revelação de uma aguda incompreensão. Todo momento de achar é um perder-se a si próprio. Estou tão assustada que só poderei achar que me perdi se imaginar que alguém está me dando a mão"

(Trechos do livro "a paixão segundo GH" de Clarice Lispector)

0 Comentários:

Postar um comentário

Assinar Postar comentários [Atom]

<< Página inicial