quinta-feira, setembro 28, 2006

FELIZ COMO UM CÃO

Por: Hermengarda Baptista

Falaram que a felicidade é invenção dos humanos.

Para alguns a felicidade é estar estável. Para o traficante, é brincar de Deus com a vida alheia, ainda que na cadeia. Para o político, a felicidade é roubar muito dinheiro, muito além do que ele possa gastar numa só vida esbanjada. Para os gatos e orientais, a felicidade é ser emocionalmente independente. Para o adolescente, ser feliz é "plurigamia" e encher a cara, fazer mil coisas ditas proibidas e achar que não tem limite. Para o viciado, a felicidade é química.
Mas todo mundo divaga sobre a felicidade - acreditando ou não nela.

Engraçado observar que muitas vezes, a felicidade é apenas vitrine que nunca está à venda. As pessoas que mais posam de felizes, dão receitas, regras, modelos e medidas. São instituições sólidas, imutáveis e inflexíveis: família, religião, matrimônio, trabalho (ou dinheiro, talvez mais precisamente), poligamia, drogas (passaporte mais rápido da felicidade).
Enquanto Babita expele a fumaça do seu prazer químico instantâneo sentada na janela, eu olho Pretinha, vira-latas de rabo fino e olhos pidões. Efusiva nos reencontros diários com sua humana, e também tão feliz quando chegam os outros humanos dela (alguns - porque outros, ela deliberadamente detesta e lhes rasga as meias).

Displicente aos modelos de relacionamento, ela chantageia, faz e implora por carinho anacrônica e desmedidamente, mesmo quando este já é muito. Pede comida sem fome pelo simples hábito de participar das refeições, já que não senta a mesa. Até a ração "fast food" ela come animação. Cedinho da manhã, feliz da vida, ela vai à rua, como se fosse a primeira vez na vida, com o mesmo entusiasmo, com a mesma vibração.

No reino das instituições, socialmente requisitadas para a felicidade, Pretinha passa ao largo de sua solidez. Todos os modelos são flexibilizados diante da autenticidade do cão. Se olharmos bem: Pretinha, entre todos nós, é quem mais pode ser auto-suficiente. Mas ela prefere ser frágil e carente, deliberadamente chantagista.

Às vezes acho que a auto-suficiência é um sobretudo que transforma nossos limites, nossos defeitos, as coisas que podemos melhorar, em "fragilidades". No posto de fragilidade elas nos oferecem o risco indizível do segredo, da constante ameaça de exposição, da invasão, da fraqueza. E, simultaneamente, ficam inatingíveis à mudança, de difícil acesso à evolução.
Minha felicidade é a arte de me equilibrar na tênue linha entre a aceitação submissa aos modelos e a reação furiosa a eles. Por incrível que pareça, esta linha é tênue. Às vezes, gasto boa parte de minha energia apenas reagindo à solidez destas instituições.

Sentei aqui nesta estrela, divagando. É estranho de entender: meus sentimentos são possíveis. São lícitos. E além de tudo, são meus - não dependem dos outros, por mais que eu pense o contrário.

O que eu queria mesmo era ser feliz como um cão...

"ouça um bom conselho, que eu lhe dou de graçainútil dormir que a dor não passaespere sentado, ou você se cansaestá provado, quem espera nunca alcança"(Bom conselho - Chico Buarque)

"caminhar decido, pela estrada que ao findar vai dar em nada do que eu pensava encontrar"(Se eu quiser falar com Deus - Gilberto Gil)

"eu quero a sorte de um amor tranqüilocom sabor de fruta mordida... ser teu pão, ser tua comidatodo amor que houver nesta vidae algum remédio que me dê alegria"(todo amor que houver nesta vida- Cazuza)

0 Comentários:

Postar um comentário

Assinar Postar comentários [Atom]

<< Página inicial