quarta-feira, setembro 27, 2006

Solidário e cúmplice

Nesta tarde morna, com um céu azul preguiçoso, eu volto pela cidade vazia e me lembro de Florentino Ariza.

Muitas coisas me chamam atenção naquele homem tão estranho. A princípio, o imaginava um tanto asqueroso e limitado, como quem vive em função de um sonho impossível – Fermina Daza. O amor de adolescente era intensamente escrito e "poetizado", mas nunca fora vivido. E assim, quando ficaram frente a frente, Fermina Daza desiste imediatamente do seu suposto grande amor, pelo qual suportara tantas restrições, viagens e repressões.

No entanto, Florentino Ariza persiste com este amor, que a todos, sobretudo a nós leitores, parecia impossível. Calado e velado dentro de si, vivia muitos relacionamentos de uma forma que me parecia superficial. Mas não era. Ele apenas amava as mulheres, com seus defeitos e qualidades, sem querer nada delas além do que elas poderiam o dar, ou às vezes, menos que isso. Amava sobretudo seus defeitos, como o Diego de Frida Kahlo. E amar os defeitos de alguém é tornar-se tão cúmplice que torna-se imprescindível, encantador. Sobretudo porque a tendência de todo mundo é se proteger da mudança, e todos os sacrifícios e frustrações que ela traz em si.

Não exigia nada de ninguém nem de si mesmo – por isso, permaneceu o mesmo durante toda espera. Também ninguém sabe o que se aprendeu com ele ou o que ele aprendeu com alguém. E de vez em quando, ele se tornava necessário, em presença física, e fazia o que era preciso, ajudava, sem cobrança. Era cúmplice.

Isso me intriga: qual é a diferença de ser cúmplice ou ser solidário?

À medida que ele não exigia nada de ninguém, nem sequer se pensava em exigir-se algo dele – isso vinha implícito, e talvez mais forte do que qualquer pacto escrito e registrado em cartório. As coisas que são registradas nos sentimentos não precisam ser registradas em papéis.

Com Fermina, era diferente. Ele esperou que ela o assumisse: calma e tranqüilamente. Mas esperava algo dela: esperava construir algo com ela. Esperou que ela fizesse a viagem com ele, e ela atendeu as suas expectativas. E apesar de esperar algo dela, ele, por sua vez, aceitava todas as grandes diferenças entre o sonho que ele tanto esperou e o que ele viveu, sem frustrações.

Eram solidários. Esperava-se que tivesse paciência, que tivesse tolerância, que tivesse aceitação, que tivesse coragem de viver o sonho do jeito que ele era possível. Um aceitava as limitações do outro, mas esperavam construir algum laço, ainda que Fermina não admitisse nem para si mesma.

Esperar algo de alguém é, muitas vezes, acreditar na capacidade desta pessoa de construir, de criar, de desenvolver e evoluir – que nem todo mundo tem. E mais que isso: querer participar da vida - não só de momentos supostamente bons. As grandes alegrias vêm nas grandes conquistas, que traz em si momentos bons, ruins, de esperança, desespero e angústia, de ilusão e medo, de fantasia e sonhos – todos os tipos de sentimentos.

Então, para mim, Florentino Ariza muda de forma: de um homem franzinho, despido de encantos físicos e com um jeito um tanto asqueroso, para um homem que tem muito a me ensinar do outro lado destas páginas. Tanto que sai das páginas e me volta a memória, à toa, numa tarde morna, com um céu preguiçoso, que já começa a chover, solidário com meu espírito preguiçoso e cansado.

Do lado de Florentino Ariza, em mim, mora Frida: de quadros fortes, grandes defeitos físicos, de um pensamento tão livre quanto sua capacidade de buscar os momentos, e vivê-los – sem hesitação. Se de um lado, Diego amava os defeitos das mulheres, ela tinha mil defeitos físicos, e mil características completamente distintas do que era socialmente aceito – habitualmente intitulados como defeitos. Apesar de disfarçar seus defeitos físicos, felizmente nunca quis mudar a irreverência de sua personalidade. Seus quadros, de uma intensidade impressionante, falavam de coisas íntimas, que ela expunha ao mundo, como se não coubesse mais dentro de si.

O jogo de contrários e contrastes de suas telas era vivo na sua vida. Se de um lado, vestia-se de uma forma própria, criando um estilo, para disfarçar seus defeitos físicos, e paralelamente a isso, expunha sua personalidade, com força e coragem. Era sua dor: sua vida encravada de dor, desde a paralisia infantil, o acidente, e suas tantas seqüelas, à deslealdade de Diego e da irmã...

Como Florentino Ariza, ela também amava as pessoas pelo que as fazia distintas da maioria: sua personalidade, sua beleza interior, sua história, suas dores – a magia que transmitiam para o mundo. Costuma-se dizer que, na arte, belo é tudo aquilo que choca. E ela, como uma boa artista, trazia este gosto na alma. Amava a preservação das diferenças das pessoas e o percurso que se propunham a seguir. Ela me parecia mais solidária do que cúmplice: contemplava as evoluções, ativa ou passivamente, e admirava, as esperava, acreditava nelas, apoiava no acerto ou na derrota, no exílio ou na glória, com ou sem paciência, ao invés de estimular a acomodação e simples aceitação dos fatos e defeitos.

Às vezes, não basta só estar ao lado. É necessário deixar crescer e libertar-se: saber conviver com o sucesso do outro, com o próprio sucesso, com as evoluções. Ser solidário não se resume às dores. É o que faz a diferença entre conviver e viver com, sobreviver, subviver e viver. É o que guarda as pessoas na lembrança quando elas não podem mais ser abraçadas.

A maioria das pessoas se acostuma a "subviver". Outras seguirão sobrevivendo, com se estivessem imiscíveis à vida, como se fossem superiores a ela. Poucas realmente acreditaram que as mudanças custam caro, no entanto, são o preço da felicidade. Até os imóveis precisam de reparos e consertos indefinidamente. Não seria diferente com a felicidade, que é a porção mágica que transforma um dia atrás do outro numa vida, a presença de uma pessoa numa riqueza e o pensamento em memórias.


texto de 24/06/2003

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